O Passeio Público do Rio de Janeiro, primeiro jardim público
do Brasil, foi construído em fins do século XVIII pelo Mestre Valentim e
tombado em 1938 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –
IPHAN. O jardim passou por intervenções ao longo do tempo, mas o objetivo de
restauro promovido em 2004 pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro foi
resgatar as características do jardim de Glaziou, com valorização dos vários
aspectos do projeto de Valentim nele presentes.
O botânico francês Auguste François Marie Glaziou veio ao
Brasil em 1858, a convite de D. Pedro II, e aqui permaneceu por 39 anos,
implantando os espaços verdes da Corte e preservando-os. Ele trouxe à cidade do
Rio de Janeiro os jardins nos moldes ingleses, com alamedas sinuosas em torno
de um grande canteiro central.
No Passeio Público, Glaziou manteve os principais elementos decorativos construídos pelo Mestre Valentim. E eram justamente eles que, neste início de século XXI, mais evidenciavam a degradação do espaço. Nos anos 1990, medidas pontuais de recuperação não lograram bons resultados. A ausência de uma atuação constante de conservação no parque fechado inutilizava qualquer iniciativa e desestimulava novas tentativas.
No Passeio Público, Glaziou manteve os principais elementos decorativos construídos pelo Mestre Valentim. E eram justamente eles que, neste início de século XXI, mais evidenciavam a degradação do espaço. Nos anos 1990, medidas pontuais de recuperação não lograram bons resultados. A ausência de uma atuação constante de conservação no parque fechado inutilizava qualquer iniciativa e desestimulava novas tentativas.
Em 1998, quando a prefeitura providenciou a
recuperação dos quiosques de madeira, as construções foram duramente atacadas,
em plena obra, provocando a destruição do madeiramento, com a clara intenção de
não se concretizar ali um posto de vigilância.
Foto 2:
Face interna da coluna do portão de acesso – Portão do Mestre Valentim - 2001
Diante dessas ações, além dos inúmeros outros danos
sofridos pelo parque, era imperativa a necessidade de se elaborar um plano de
revitalização do Passeio Público. Com esse objetivo, sob a orientação de
técnicos do IPHAN, tive acesso aos primeiros estudos para elaboração de um
plano de ações, seguindo o Manual de Intervenções em Jardins Históricos, de
Carlos Fernando Delfim, lançado posteriormente – em 2005 – pelo IPHAN. O manual
indicava as questões a serem estudadas, servindo como ponto de partida para a
contratação do projeto executivo de restauração, com diversos pesquisadores e
profissionais a elaborar os planos e ações a serem empreendidos no Passeio
Público.

Ao final de 2002, já estavam prontos a pesquisa histórica,
o levantamento e o mapeamento dos danos dos elementos decorativos, bem como as
diretrizes para os projetos de drenagem, paisagismo, hidrossanitários,
sinalização, luminotécnica e elétrica. Assim, foi possível, enfim, elaborar um
orçamento para a restauração do parque, o que se concretizou no final de 2003.
Contudo, havia questões históricas importantes que não
tinham sido estudadas no projeto, como o processo da transformação da Lagoa do
Boqueirão no parque, no século XVIII; a existência ou não das construções
apresentadas na planta de Gaziou; a pesquisa icnográfica das construções do
início do século XX, introduzidas por Pereira Passos. Tais aspectos levaram à
necessidade de uma pesquisa arqueológica, o que se tornou uma exigência no
período da restauração do jardim histórico.
Foto 3:
Imagem do portão deslocado para a área interna do parque - 1957
A própria Carta de Veneza, de 1964, um dos mais
importantes documentos sobre preservação de patrimônios culturais, recomenda,
em seu artigo segundo, a necessidade de as equipes responsáveis pelos projetos
serem compostas por profissionais das mais diversas áreas. Assim, foi levada a
cabo uma pesquisa verdadeiramente interdisciplinar, com a efetiva interligação
dos dados produzidos pelos levantamentos históricos, arquitetônicos e
arqueológicos.
Ao longo das décadas, as alterações urbanas provocaram
efeitos ambientais no entorno do Passeio Público, o que afetou o meio ambiente
do parque. Inundações nos períodos chuvosos, por exemplo, impediam a frequência
de visitantes. A queda de árvores centenárias, com o apodrecimento das raízes,
e a alteração da inclinação de uma das pirâmides do Mestre Valentim
evidenciavam a necessidade de acompanhamento do nível do lençol freático,
culminando com a introdução de uma rede de drenagem, até então inexistente no
local. Também foram realizados levantamentos nas concessionárias de serviços
públicos. E a topografia do espaço foi mapeada, para definir o traçado.
A primeira intervenção física foi a implantação da rede de
drenagem, tarefa que, em uma iniciativa inédita, considerou uma legislação
específica expressa no Decreto Municipal nº 22.872, de 07/05/2003, cujo Artigo
1º diz que “Todas as obras que envolvam intervenções urbanísticas e/ou
topográficas realizadas pelo Poder Público Municipal – direta ou indiretamente,
em áreas que sugiram interesse histórico – deverão prever estudos e acompanhamento
com vistas à pesquisa arqueológica”.
Assim, as escavações necessárias para o projeto de
drenagem seguiram o ritmo e o comando de uma equipe de arqueólogos. A abertura
de trincheiras e poços-testes ou qualquer movimento de terra necessário visavam
à recuperação de todos os vestígios possíveis, para remontar a história do
Passeio Público. Foi encontrada uma grande variedade de material arqueológico:
fragmentos de louças dos séculos XVIII e XIX, pedaços de cerâmica, restos de
obras (material de construção e de acabamento), ossos humanos e de animais,
dentes, vidros e moedas.
Foto 5: Escavação para
a construção da nova rede de drenagem
Foto 6: Construção das
caixas de drenagem no local
Para desenvolver o projeto de pesquisa arqueológica
do Passeio Público, a assessoria de Arqueologia da 6ª Superintendência Regional
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (6ªSR/IPHAN) se uniu
a profissionais da Fundação Parques e Jardins e da FB Engenharia, com a
participação de consultores, arquitetos, arqueólogos, historiadores e
paisagistas.
Foto 7: Fonte do Jacaré com a bacia completa -
R. H. Klumb. Bliblioteca Nacional, 1860
Foto 8:
Fonte do Jacaré - 1996
A partir do projeto de Glaziou, outros vestígios de épocas
passadas foram encontrados, como o lago do chafariz na entrada do parque e a
casa de Glaziou, que ali habitou. Também foram localizadas algumas intervenções
do inicio do século XX, até então desaparecidas, como o Aquário e o
Theatro-Cassino.
Foto 11: Lago
implantado por Glaziou na entrada do parque e a fonte do Jacaré no fundo – Foto
do arquivo do Museu da Cidade
Para o resgate do paisagismo implantado por Glaziou,
fez-se uso do levantamento florístico que integrou o projeto executivo do
parque, mas também do estudo de outros espaços de Glaziou e dos registros
iconográficos do próprio Passeio Público. Nessa fase, a participação de
especialistas no trato de jardins históricos foi essencial.
Segundo a Carta de Florença, de 1982, “o trabalho de
restauro deve respeitar as sucessivas fases da evolução do jardim em questão.
Em princípio, não se deve dar precedência a nenhum período sobre outro, exceto
em casos excepcionais, quando o grau de destruição e de danos que afetam
algumas partes de um jardim sejam tais que seja decidido reconstruírem-se essas
partes, com base nos vestígios que sobreviveram ou em evidências documentais
indiscutíveis. Esse trabalho de reconstrução pode ser executado, especialmente,
nas partes do jardim situadas mais perto do edifício nele contido, para se
fazer sobressair o significado dessas partes do conjunto.”
No Passeio, algumas novas espécies estavam presentes, tendo sido mantidas as que eram compatíveis com o projeto. Permaneceram, por exemplo, os paus-reis ao lado direito da Fonte do Jacaré. No lado esquerdo, foram plantadas palmeiras-imperiais, para formalizar o plantio de Glaziou. E resgatou-se a perspectiva da mesma fonte a partir do portão de acesso, que estava completamente obstruída por um grande bambuzal no canteiro central.
No Passeio, algumas novas espécies estavam presentes, tendo sido mantidas as que eram compatíveis com o projeto. Permaneceram, por exemplo, os paus-reis ao lado direito da Fonte do Jacaré. No lado esquerdo, foram plantadas palmeiras-imperiais, para formalizar o plantio de Glaziou. E resgatou-se a perspectiva da mesma fonte a partir do portão de acesso, que estava completamente obstruída por um grande bambuzal no canteiro central.
Foto 13: bambuzal
no centro do parque que obstruía a amplidão do parque e obstruía a visão da
Fonte do Jacaré - 2002
Foto 14: área
central do parque sem o bambuzal conforme projeto paisagístico de Glaziou -
2005
A restauração do jardim recuperou o uso do Passeio Público
pela sociedade, como um espaço amplo e limpo com recantos.
Foto15: Recanto de
rocailles onde a Glaziou introduziu elevação e pedras decorativas no parque.
Os elementos decorativos do parque estavam em evidente
degradação, incluindo suas esculturas, pontes, guarda-corpos, postes, lagos,
bustos, o portão do Mestre Valentim e a Fonte do Jacaré. Por conta disso, foram
convocados vários profissionais especializados no tratamento de diversos
materiais. Diferentes equipes trabalharam simultaneamente, limpando, decapando,
modelando, fundindo e lavando as muitas peças do acervo escultórico do parque.
Foto 17: Limpeza e
tratamento dos postes em ferro fundido
Foto 18: Execução de
parte faltantes da bacia da Fonte do Jacaré
Durante as restaurações, alem de recuperar o projeto
de Glaziou, a grandeza da arte do Mestre
Valentim foi recuperada, com a remoção das inúmeras camadas de tinta que se
acumulavam sobre o ferro e o bronze do medalhão do Portão Monumental do parque,
fundido no Rio de Janeiro em 1768. A peça havia sido retirada do Passeio
Público em 1996, para a entrada de caminhões de limpeza, estando, desde então,
sem o devido reconhecimento de sua importância para a cidade.
Foto 19.Frontão do portão Monumental guardado no depósito
da Prefeitura de 1998 a 2004
Foto 20. Frontão no portão Monumental em 2004
Desde o ano de 2004, com o fim da restauração, a limpeza do Passeio Público tornou-se diária e a segurança passou a ser 24 horas. Contudo, ao longo dos anos, os serviços de poda das árvores, manutenção dos jardins e limpeza dos monumentos seguiram ineficientes. Furtos de balaústres e de pequenas peças de bronze, além dos danos à iluminação, evidenciavam a fragilidade do espaço e pronunciavam uma nova fase de decadência.
A conservação passou a ser a maior preocupação, devido aos
danos causados pela ação do tempo e da utilização do bem patrimonial, que
necessitariam ser amenizados através de medidas preventivas. Em 2009, quando
assumiu no Rio de Janeiro uma nova gestão municipal, predominou o entendimento
de que os parques, praças, ruas e avenidas da cidade necessitavam de
conservação, não apenas de novas obras. Em 2010, a prefeitura organizou uma
nova secretaria de governo para manter e revitalizar os espaços públicos, a Secretaria
Municipal de Conservação e Serviços Públicos, passando a executar as
novas intervenções urbanas, separada da antiga Secretaria de Obras. Entretanto, o entendimento do conceito de
“monumento vivo” ainda não é facilmente assimilado, representando um dos
principais desafios para a manutenção.
Esse artigo foi publicado em Arqueologia na Paisagem: olhares sobre o jardim histórico/ Orgs. Jeanne Trindade, Carlos Terra - Rio de Janeiro: Rio Book's, 2014